Mario Sergio Cortella, mestre e doutor em Educação
“Enquanto não tivermos todas as crianças de 0 a 17 anos da educação básica dentro do processo de escolarização, enquanto tivermos adultos acima de 15 anos de idade que não tenham a alfabetização…”
Cristiane Lopes
Nosso entrevistado de hoje é Mario Sergio Cortella, filósofo brasileiro, mestre e doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também é professor-titular do Departamento de Teologia e Ciências da Religião e da pós-graduação em Educação, além de professor-convidado da Fundação Dom Cabral e do GVpec da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo.
Ele, que tem casa em Ilhabela há muitos anos, já foi secretário municipal de Educação de São Paulo (1991-1992) e é autor, entre outros livros, de A Escola e o Conhecimento, Nos Labirintos da Moral, com Yves de La Taille, Não Espere Pelo Epitáfio: Provocações Filosóficas, Não Nascemos Prontos! e O que a Vida me Ensinou – Viver em Paz para morrer em Paz.
Imprensa Livre – Como o senhor define a função de professor?
M.S.C. – É uma capacidade de partilha, é uma força de vitalidade numa comunidade, é uma maneira de fazer com que a vida eleve sua condição e, ao mesmo tempo, é um dos caminhos mais fortes de socialização dentro de uma sociedade. Por isso eu sempre gosto de brincar que nós somos profissionais amadores, isto é, nunca estamos completos, porque lidamos com gerações, somos amadores nesse sentido da não completude.
I.L. – O senhor acredita que os professores ganharam novas atribuições nos últimos 20 anos?
M.S.C. – Ganharam muitas atribuições, sem que houvesse uma correspondência disso em relação às condições de trabalho. Por exemplo, hoje, numa escola, além da atividade de formação científica, também se faz uma formação que é lateral (não que não seja importante, mas que ficou quase radicada dentro da escola), que é a educação sexual, a educação religiosa, a educação para o trânsito, para a ecologia, para a convivência, para a negação do consumo de drogas ilegais. Então, houve sim uma carga fortíssima nos últimos 20 anos e isso sem dúvida levou a um “soterramento” docente, nos levando também a praticar, mesmo que de maneira não intencional, o que chamo de “pedagocídio”, o assassinato das condições pedagógicas em varias situações.
I.L. – O aluno de hoje é diferente do perfil de 20 anos atrás?
M.S.C. – As plataformas digitais hoje levam a uma aceleração do dia a dia, imprimem maior pressa ao que fazemos. O conceito de geração que anos atrás era de um espaço de 25 anos para cada nova geração hoje foi acelerado imensamente, e nós já identificamos novas gerações num tempo de dois, três anos de uma para outra, o quer faz com que tenhamos que tomar cuidado para que a atividade docente não tenha precarização quanto à nossa competência e habilidade. Por outro lado, o professor não é responsável pela sua própria formação. O poder público e o poder privado precisam cuidar pra que haja a consolidação de uma educação permanente nossa, de modo que se dê conta dessas novas gerações. Não é verdade que é obrigatório o uso dessas plataformas no cotidiano da escola como única forma de melhoria do trabalho. Um trabalho será bem feito se souber fazê-lo. Pode ser bem feito sem computadores. E pode ser melhor feito com os computadores, mas é preciso lembrar que quem sabe cozinhar cozinha em fogão à lenha e quem não sabe pode ter nas mãos um fogão atômico que nada fará.
I.L. – Quais as principais conquistas da Educação no Brasil nos últimos 10 anos?
M.S.C. – Nos últimos 20 anos o Brasil começou a sair da indigência educacional. Tivemos grandes conquistas, em primeiro lugar com o financiamento da educação básica com fontes – como é o caso do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), que antes não tinha essa marca dentro da educação escolar brasileira. Em segundo lugar a capacidade de estabelecer um piso nacional salarial para a atividade de docente, que, embora sujeita a polêmicas, no dia a dia é algo urgente e necessário para que não tenhamos tanta disparidade e desprestigio da atividade docente. Em terceiro lugar também uma maior democratização de acesso ao ensino superior brasileiro por intermédio do ProUni (Programa Universidade para Todos), com a introdução do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) como um mecanismo de facilitação de se levar em conta o que se tem na educação básica e, por fim, o grande movimento que é importante hoje no nosso país, que é a organização de conselhos municipais de educação, que sejam mais paritários e deliberativos, que foram uma conquista da democratização da gestão. Então, esses quatro grandes pólos nos colocam um avanço. Saímos da UTI, estamos agora na enfermaria da educação pública e, para sairmos de fato do hospital e deixarmos de ficar adoentados na área de educação, espero que até 2022, quando conseguirmos 200 anos de nossa independência formal, tenhamos condições de não ter mais criança alguma fora da escola, nenhum jovem entre 14 e 17 que não possa estar dentro do ensino médio, que tenhamos um número muito maior de pessoas no curso superior e, ao mesmo tempo, que as condições de trabalho docente sejam favoráveis a que uma nação, sendo hoje a sexta mais rica do planeta, não possa se contentar em ser a 66ª em condições de educação escolar.
I.L. – A tecnologia favorece o aprendizado ou dispersa o aluno?
M.S.C. – É preciso lembrar que não é a tecnologia que moderniza uma mentalidade, é que uma mente moderna não dispensa tecnologia quando ela é necessária. Claro, há uma serie de mídias hoje que distraem, mas, por outro lado, se não preciso usar em sala de aula, obrigatoriamente, um data show, um power point, uma conexão web, um computador (porque nem sempre isso favorece a construção de conceitos), por outro lado a tecnologia é indispensável para preparar a aula, para fazer pesquisa, para criar uma comunidade de debate, para favorecer a visualização do que se terá. Portanto, a primeira plataforma de ensino à distância foi o livro. O livro permitiu desde a sua invenção e a sua utilização nos últimos 2.500 anos que se fizesse ensino à distancia, ou seja, que eu pudesse levar aquilo que era conteúdo exclusivo de alguém para outros lugares ou “pra casa”. As plataformas digitais que existem hoje não são concorrentes, uma não derruba a outra, tal como o jornal não desapareceu com a televisão, nem o rádio sumiu, nem o teatro foi ao fim com a entrada do cinema no circuito. Então essas tecnologias são necessárias e no uso em sala de aula é necessário cautela porque, de fato, tem componente que pode tirar o foco da construção de conceitos. Portanto, não é que se deva retirar a tecnologia da escola – isso seria uma tolice – mas depositar na tecnologia a esperança de que isso vai elevar a condição de aprendizado é outra tolice do mesmo tamanho.
I.L. – O senhor acredita que aumento salarial para os professores é o caminho para ganho de qualidade na Educação? Qual sua resposta para os municípios que reclamam que o piso salarial não cabe no orçamento?
M.S.C. – Orçamento é uma questão de prioridades, uma sociedade que o tempo todo diz que a educação escolar é prioridade precisa fazê-lo de fato. Uma sociedade que argumenta que é necessário remunerar melhor os professores terá que fazer a sua alteração tributária interna e participar da sustentação dessa mesma forma de pagamento. De nada adianta um cidadão dizer que defende o aumento salarial para docentes, mas não admitir o reajuste de um ponto percentual dentro do IPTU, que ajude a criar um fundo municipal de educação que favoreça essa condição. Portanto, ética não é cosmética, não é algo que se coloque apenas de fachada. Isso significa que, claro, ninguém em sã consciência suporia que o reajuste salarial por si mesmo elevaria a condição da educação. É preciso lembrar que alto salário não significa melhoria no mesmo percentual, mas com certeza salário abaixado, multiplicação de jornadas, isso agrava a condição de operação. Por isso, embora não seja a única solução, o reajuste salarial é algo sim a ser feito. Não pode mais se admitir que um professor tenha essa condição. Ademais é uma atividade que não tem a remuneração daquilo que é feito fora. Por exemplo, com todo respeito a outras profissões, um bancário, um industriário, alguém que trabalhe em outra atividade, a hora que termina o expediente ele vai embora, não leva trabalho para casa. Imagine uma professora de Língua Portuguesa que tenha 10 turmas para poder compor uma carga de 10 horas de trabalho. Se ela tiver 10 turmas e 35 alunos em cada, vai ter 350 alunos. Se der uma redação por semana, que é o mínimo para ajudar meninos a escrever, serão 350 redações para corrigir na semana. Vai ter que usar sábado e domingo para corrigir esse material. No período de férias fazemos cursos, vamos a congressos, e nem sempre há cobertura financeira para isso. Muitos professores não conseguem assinar um jornal, uma revista, ir ao cinema, ao teatro, e isso contribui contrariamente à formação que levaria a um trabalho melhor. Portanto, é claro que reajuste de salário não é em si a solução, mas sem ele não haverá solução. E se o prefeito argumentar que o piso nacional coloca alguma dificuldade, faz-se necessária uma conversa com a Câmara Municipal e com os cidadãos, de maneira que haja uma contribuição maior para que se possa fazer o sustento daquilo que todos dizem que é prioridade, que é a educação.
I.L. – Quais são os principais problemas da Educação no país? Qual sua opinião sobre os recentes índices da Educação, como o IDEB?
M.S.C. – O Brasil tem quatro grandes dificuldades hoje na área educacional. A primeira é a democratização do acesso e da permanência. Não basta que entrem e sim que permaneçam na escola. Não basta contar a escolarização do ponto de vista numérico pelas matriculas, porque é grande o número de crianças que se matricula e durante o ano vai deixando o processo de escolarização. Toda vez que temos uma sociedade com nível de escolarização formal menor isso prejudica nossa capacidade de absorção tecnológica, de enfrentamento de novas plataformas dentro do mundo do trabalho e, especialmente, maior dificuldade de autonomia tecnológica na mesma sociedade. A segunda grande trilha de dificuldade é a democratização da gestão, isto é, ainda se deixa muito a educação nas mãos do poder público, sem que o cidadão participe efetivamente daquilo que já está previsto na constituição e na lei de diretrizes e bases da educação nacional de 1996, que é a democratização da gestão pelo Conselho Municipal de Educação, que cada cidade tem que ter, e conselhos regionais de educação e o conselho de escola ou colegiado escolar, que está previsto na legislação, seja na área municipal ou estadual, que precisa ser ocupado no dia a dia para ajudar a gerir.
Porque quando uma comunidade participa dessa gestão ela se apropria, isto é, torna própria, ou seja, a escola se torna um espaço que a ela pertence. Um terceiro grande problema é a nova qualidade de ensino, ou seja, uma formação continuada docente, com novas condições de trabalho, que possam fazer com que nós não tenhamos uma defasagem em vales profundos em relação à nossa competência com as novas plataformas que chegaram e com o avanço acelerado da divulgação da informação. Essa nova qualidade de ensino exigirá investimento maior na formação docente em parceria com as universidades públicas e privadas, todos que se beneficiem de isenção tributária, como é o caso de parte do ensino superior. O último desses quatro grandes movimentos é a questão da educação de jovens e adultos. Embora o país tenha avançado muito nisso, ainda temos 12,5 milhões de homens e mulheres acima de 15 anos que não conseguem ler o lema da própria bandeira. Apesar disso, perto de outros paises e no Mercosul, por exemplo, somos o último em termos de anos de escolarização. Perto do Paraguai, Argentina e Uruguai, temos um nível de alfabetização digital, por incrível que pareça, que é maior para pessoas que não passaram pela escolaridade. O Brasil informatizou o atendimento bancário por conta da inflação muito alta até há 20 anos, informatizamos nossa eleição. Nenhum país do mundo faz uma eleição como nós, em que até as 22h o resultado já acontece. Temos algumas facilidades que precisam ser aproveitadas.
I.L. – Vale a pena ser professor?
M.S.C. – Não gosto da expressão vale a pena, porque parece que tem uma pena em selo. E pena sempre lembra a idéia de penalidade, de sofrimento. Eu diria vale demais ser professor. Vale sim. Temos na vida coisas que fazemos pelos “apesares” e outras que fazemos pelos “por causa”, isto é, a vida tem razões e senões. E nós temos alguns senões para a atividade docente: a condição de trabalho, a desvalia social, a densidade de enfrentamento de parte de crianças e jovens que não tenham formação mais sólida, mas os nossos porquês, as nossas razões são muito maiores, isto é, a capacidade de repartição, a possibilidade de proteger o futuro, o exercício do esperançar, tudo isso vale muito, vale tanto que a gente nem lembra que existiria uma pena por trás.
(Colaboração de Thereza Felipelli e Leonardo Rodrigues)
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