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CIV
Da eternidade da alma
Sêneca saúda o amigo Lucílio
Ensina, tu, com razão, a elevar o pensamento para a imensidão. Uma coisa muito grande e generosa é a alma humana. Ela não tolera mais limites do que aqueles que são comuns à divindade. Por princípio, não aceita uma pátria no sentido restrito do termo, Éfeso ou Alexandria, ou qualquer outro lugar, caso exista, de maior população ou maiores construções. Sua pátria compreende tudo o que é rodeado pelo universo até os confins mais distantes, é tudo o que se encontra sob a abóbada celeste, os mares e as terras, onde o ar separa e une ao mesmo tempo o mundo dos deuses e dos homens, onde as divindades, cada uma em seu posto, cumprem uma missão específica.
Além disso, não permite que restrinjam a sua duração. “Todos os anos são meus”, diz ela, “não existe época proibida aos grandes espíritos; não há idade inalcançável ao pensamento. Quando surgir o dia em que se dividirá o que é humano e divino, este corpo ficará ali mesmo onde foi encontrado e me reunirei aos deuses. Mesmo agora não estou longe deles; apenas ainda sou detida pela existência terrestre.”
Tais esperas da vida mortal são apenas um prelúdio para uma outra existência, melhor e mais durável. Da mesma forma como durante nove meses somos abrigados e preparados pelo ventre materno não para si, mas para onde deve nos lançar quando já somos capazes de respirar e viver ao ar livre, assim, durante esse período que vai da infância à velhice, amadurecemos para um outro nascimento.
Um outro nascimento nos aguarda, uma outra ordem das coisas. Ainda não podemos suportar o céu senão de longe, por isso prevê com coragem a hora decisiva não para a alma, mas para o corpo. A tudo que te rodeia, olha como móveis em um quarto de hospedaria, pois estás de passagem. A natureza despoja tanto quem entra quanto quem sai.
Não te é permitido levar mais do que tens, e até o que trouxeste para a vida ao nascer aqui deverá ser deixado. Perderás a pele, o mais superficial de teus envoltórios; perderás a carne e o sangue que corre pelo teu corpo; perderás os ossos e os nervos, aquilo que sustenta as partes informes e flácidas de teu corpo.
Esse dia que temes como o último será o de teu nascimento para a eternidade. Deposita o teu fardo. Por que hesitas, como se já não estivesses fora de um corpo no qual estavas escondido? Hesitas, resistes. Também foste expulso com grande força do corpo de tua mãe. Gemes, choras como quando nasceste. O choro é próprio daquele que nasce, mas, na época, eras inexperiente e ignorante, podias ser perdoado. Ao saíres do aconchegante esconderijo do ventre materno, um ar fresco soprou sobre ti, depois sentiste o contato de uma mão rude e, ainda tenro e inexperiente, sentiste o estupor do desconhecido.
Agora, já não é novidade para ti apartar-te daquilo de que antes fazias parte. Abandona com serenidade estes membros que já não te servem mais e deixa este corpo que por tanto tempo habitaste. Ele será destruído, vai sumir, acabará. Por que ficas triste? É assim, também se tira a membrana que recobre o recém-nascido. Por que te apegas tanto a estas coisas como se tuas fossem? Apenas estás coberto por elas. Dia virá em que elas serão tiradas e, então, estarás liberto desse ventre repugnante e infecto.
Desde já, te desfaz desse invólucro e, livre de tudo o que te prende e que não é necessário, pensa, desde agora, em planos mais altos e mais sublimes. Um dia, os segredos da natureza te serão revelados, a névoa que te encobre será retirada e serás iluminado por uma brilhante luz. Imagina o fulgor das luzes de inúmeros astros juntas em um único feixe. Nenhuma sombra abalará tal serenidade. O céu resplandecerá como um todo. O dia e a noite só ocorrem em nossa inferior atmosfera. Então, poderás dizer que viveste nas trevas, quando, em toda a plenitude, puderes contemplar a totalidade da luz que agora apenas espreitas pelas frestas de teus olhos. O que dizer quando perceberes que isso que agora te encanta nem de longe se equivale à luz divina que vais contemplar em lugar desta?
Tal pensamento não permite que deposites no fundo de tua alma nenhuma baixeza ou crueldade. Ele nos faz perceber que os deuses são testemunhas de tudo. Faz com que possamos merecer a sua aprovação, prepara-nos para a sua presença futura e para que não percamos de vista a eternidade. Aquele que firmou em sua alma esse propósito não teme nenhum exército, nenhuma ameaça o deixa inquieto. Quem espera a morte nada teme.
Até mesmo aquele que pensa que a alma só existe enquanto presa ao corpo e que, quando este se dissolve, ela se esvai junto faz tudo para ser útil mesmo após a morte. E isso ocorre porque, ainda que tenha sido tirado da vista de todos, “a grande virtude do varão e a grande honra de sua raça continuam a viver em nosso espírito”.[1] Pensa no quanto nos são úteis os bons exemplos e saberás que igualmente úteis são a presença e a memória dos grandes homens. Passa bem!
[1] Virgílio, Eneida, IV, 3-4. (N.T.)
– Sêneca, no livro ‘Aprendendo a viver – cartas a Lucílio’ de Lúcio Anneo Sêneca. [tradução do latim por Lúcia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas]. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010.
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Da obra
As cartas de Sêneca a Lucílio (Epistolae morales ad Lucilium) são consideradas a grande obra-prima do filósofo latino. Aprendendo a viver é uma seleção de 29 textos desses 124 que Sêneca redigiu nos seus anos finais, entre 63 d.C. e 65 d.C., e apresenta uma síntese dos princípios de sabedoria, virtude e liberdade que o pensador perseguiu em vida.
Influenciado pela escola estóica e também pelos ideais epicuristas, Sêneca refletiu sobre as mais profundas contradições da condição humana, questionamentos universais, que acompanham a sociedade desde o início da Era Cristã até a atualidade. Sua filosofia aborda a busca da felicidade, o medo da morte, as desilusões, a amizade e levanta uma das principais questões dos nossos dias: como conjugar qualidade de vida e tempo escasso. Leitores do século XXI serão surpreendidos por lições como: “A duração de minha vida não depende de mim. O que depende é que não percorra de forma pouco nobre as fases dessa vida; devo governá-la, e não por ela ser levado.”; “O defeito maior da vida é ela não ter nada de completo e acabado, e o fato de sempre deixarmos algo para depois.” Ou ainda: “Não deixemos nada para mais tarde. Acertemos nossas contas com a vida dia após dia”.
As cartas de Sêneca fazem parte de uma longa tradição do gênero epistolar, e se distinguem das cartas comuns por não se destinarem à comunicação de natureza pessoal ou familiar, aproximando-se mais da crônica histórica. É comum ao gênero a presença de um interlocutor para desenvolver a filosofia por meio do diálogo. No caso de Lucílio, não há confirmação de que ele tenha existido.
– por Lúcia Sá Rebello em “Sêneca e a reflexão sobre as contradições da condição humana” | no livro ‘Aprendendo a viver – cartas a Lucílio‘ de Lúcio Anneo Sêneca. [tradução do latim por Lúcia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas]. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010.