Rafael Modesto, Paloma Gomes e Nicolas Nascimento – Assessores Jurídicos do CIMI – Conselho Indigenista Missionário
A Constituição Federal do Brasil de 1988 albergou na sua estrutura a tese do indigenato. Desde o Alvará Régio de 1680, as terras aos indígenas é uma garantia fundamental. Contudo, como sabido por todos, esse direito sempre foi desrespeitado. Tanto que, ao promulgar a Carta Política brasileira em 1988, a opção do constituinte foi de rebuscar na história a tese do direito originário. Resgatou a proteção às terras indígenas no Alvará Régio de 1680, mas também nos ensinamentos de João Mendes Júnior, Ministro da Suprema Corte do Brasil no início do Século passado.
Daí que, temos três momentos muito importantes na história a serem lembrados: a promulgação do Alvará Régio, em 1680; a criação da tese do indigenato no limiar do século passado por João Mendes Júnior; e a promulgação da Constituição Federal de 1988, na data de 05 de outubro daquele ano, que carregou o direito originário (indigenato) para dentro do seu artigo 231.
Primeiro, destaque-se como se revelava o Alvará Régio de 1680:
§ 4.° “… E para que os ditos Gentios, que assim descerem, e os mais, que ha de presente, melhor se conservem nas Aldeas: hey por bem que senhores de suas fazendas como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer molestia. (…) e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se entenda ser reservado o prejuízo, e direito dos Indios, primarios e naturaes senhores dellas.”
Significa dizer que, desde 1680, o esbulho em face dos indígenas é um crime. Não poderiam ser mudados de lugar, mesmo em caso de concessão das suas terras por meio das sesmarias. Ainda, eram os indígenas primários e naturais senhores das suas terras – importante destacar que nunca foi revogado o referido Alvará Régio. Mais, ao contrário, ele foi cravado no cerne do art. 231 da Carta de 1988.
Nos termos da doutrina de Mendes Júnior, as terras indígenas não são passíveis de segunda posse e que, “(…) os filósofos gregos afirmavam que o indigenato é um título congênito, ao passo que a ocupação é um título adquirido (Mendes Júnior, 1912, pg. 58)”[1]. Por isso mesmo que o §6º do art. 231 da Constituição determina a nulidade de todo título de propriedade incidente sobre as terras indígenas, porque inexistente a figura de segunda posse sobre as terras do indigenato.
E ensina Mendes Júnior:
Conquanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na fase do Alvará de 1º de abril de 1680, “a primeira, naturalmente e virtualmente reservada”. (…) Por conseguinte, o indigenato não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem.
(…) as terras dos índios, congenitamente apropriadas não podem ser consideradas nem como res nullius, nem como res derelictoe; por outra, não se concebe que os índios tivessem adquirido, por simples ocupação, aquilo que lhes é congênito e originário, de sorte que, relativamente aos índios estabelecidos, não há uma simples posse, há um título imediato de domínio; não há, portanto, posse a legitimar, há domínio a reconhecer e direito originário e preliminarmente reservado (Mendes Júnior, 1914, pg. 58-59).
Em 1914, João Mendes Júnior firmava então todos os elementos do art. 231 da nossa Constituição: o direito territorial indígena é originário, inalienável, imprescritível, inviolável e indisponível. Nenhuma posse se legitima sobre as terras do indigenato, já que ela é congênita, inata e por isso mesmo há expressa previsão sobre a nulidade de títulos, porque seus efeitos jurídicos são nenhum.
Para José Afondo da Silva, ao sustentar a tese de Mendes Júnior, firma o seguinte:
Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica lusobrasileira que dita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1.º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 06 de junho de 1755, firmara o principio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas[2].
Por isso mesmo, então, que o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 garantiu a seguinte previsão:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
Portanto, quanto ao direito dos indígenas à demarcação de suas terras, protegido pelo menos desde 1680, ele é uma determinação constitucional que não deixa margem para discussão. Quanto à tese do marco temporal, nem vem ao caso pô-la em discussão, dado sua incompatibilidade com nosso ordenamento constitucional brasileiro e com a legislação internacional.
Por fim, feitas as exposições acerca da inviolabilidade do direito indígena, considerando mesmo essa previsão como cláusula pétrea, e do dever que o Estado tem na demarcação das terras do indigenato, resta averiguar que direito têm os agricultores que ocupam terras indígenas.
Daí que a Constituição no seu art. 184 e seguintes regula a política de reforma agrária, bem como, da mesma forma, o art. 4º do Decreto 1775/1996, que regulamenta o rito procedimental da demarcação de terras indígenas e, ainda, coloca como prioridade o reassentamento de famílias impactadas nesse processo.
O Ministro Edson Fachin, no âmbito da ACO 1.100, assim se posicionou sobre o tema:
Aos proprietários que se enquadrem nos requisitos para participar dos programas de reforma agrária, aplica-se o disposto no artigo 4º do Decreto nº 1.776/95:
Art. 4°. Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente[3].
A indenização, de acordo com o valor da terra nua aos impactados pelo processo de demarcação não é permitida. Contudo, é possível, sem prejuízo do direito indígena e da higidez do texto constitucional, o uso de uma via indenizatória aos particulares, quando houver ocupação de boa-fé.
Sobre esse tema, o Ministro Edson Fachin do STF entende o seguinte:
Ainda, compreendo que referida possibilidade – indenização por venda a non domino, inseria no campo da responsabilidade civil – em hipótese alguma pode consistir em impedimento à finalização da demarcação administrativa, com a extrusão dos particulares da terra demarcada sem qualquer direito à retenção pela terra nua, ou prejudicar o exercício dos direitos possessórios das comunidades indígenas com fundamento no artigo 231 do texto constitucional (Voto na ACO 1.100, fls. 64)
Necessário dizer que os indígenas são as principais vítimas, pois foram retirados de suas terras por meios ardilosos, quando não extremamente violentos. Ademais de possíveis fraudes, posses dolosas e ocupações ilícitas em terras indígenas, há, por outro lado, agricultores que adquiriram posses de boa-fé. Esses podem ter direito a escolher pelo pronto reassentamento ou por indenização por evento danoso, ou seja, por terem sido titulados por culpa exclusiva dos Estados ou da União, em terras sabidamente de ocupação indígena.
Fachin sustenta que é possível a indenização por força de ato ilícito na titulação ilegal de terras a particulares em áreas sabidamente indígenas e que “é possível afirmar que a nulidade dos títulos particulares em terras indígenas, considerada sua proteção constitucional desde a Constituição de 1934, operou-se a partir dessa Carta Constitucional, ainda que expedidos em período anterior, pois se as terras indígenas não eram terras devolutas, não poderia haver concessão a particulares, a menos que se tratasse de aldeamento extinto de forma voluntária” e que:
A possibilidade de indenização por ato ilícito na venda de terras a non domino, em ação própria de natureza eminentemente reparatória, é questão a ser amadurecida pela doutrina e pela jurisprudência, mas não aparenta colidir, em meu sentir, com a vedação da concessão de indenização pelo fato de encontrar-se a área inserida em terra indígena.[4]
Repise-se, para arrematar, que não existe a possibilidade de não demarcar e de não reconhecer o esbulho em face dos indígenas, mas sim de, ao garantir a efetivação da vontade do constituinte de 1988, a higidez e a integralidade do art. 231 da Constituição, permitir que particulares busquem individualmente a reparação por terem sido titulados em terras do indigenato, seja por meio de procedimentos administrativos próprios ou por meio de ação judicial.
Quanto à tese do marco temporal, vencida na constituinte de 1988, deve ter declarada sua inconstitucionalidade pela Suprema Corte no julgamento do Tema 1031.
[1] In MENDES JÚNIOR, João. Os Indigenas do Brazil, seus direitos individuais e políticos. São Paulo: Typ. Hennies Irmãos, 1912.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Editora Malheiros, 18.ª edição, 2000, p.831.
[3] Voto proferido por ocasião do início do julgamento da ACO 1.100.
[4] Folhas 62, 63 e 63 do voto do Ministro Edson Fachin na ACO 1.100.
fonte https://rededemocracia.com.br/
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