A Comida Como Cultura
Aprovado em primeira instância, PL que inclui a gastronomia na Lei Rouanet divide opiniões, mas abre possibilidades aos povos tradicionais do litoral norte
Por João Pedro Néia
“Brasil, sei lá, eu não vi na Terra inteira o que nessa terra dá. E o que é que dá? Gabiroba, gameleira, guariroba, guavirá”. Assim começa Brasil Nativo, música de Tom Jobim cantada por Danilo Caymmi que exalta a diversidade da fauna e da flora brasileiras. E também da gastronomia.
No último dia 15 de julho, uma notícia encheu de esperança os apaixonados pela culinária no país: foi aprovado em primeira instância pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados o PL 6562/13, que inclui a gastronomia e a cultura alimentar entre os beneficiários da Lei Rouanet. Projetos que valorizem a gastronomia e as tradições alimentares agora poderão se beneficiar dos incentivos fiscais que já valem para outras formas de cultura.
A demanda é antiga e contou com campanhas intensas de chefs de cozinha, historiadores, pesquisadores e comunidade em geral.
Em tempos de gomos de mexerica vendidos em bandejas e de garrafinhas contendo limão espremido, a notícia pode ser considerada uma vitória, especialmente no que diz respeito ao Litoral Norte, com suas inúmeras comunidades tradicionais, como os quilombolas, os caiçaras e os indígenas.
O projeto de lei prevê benefícios a projetos que valorizem não apenas a comida em si, mas também o modus operandi, como a pesca artesanal ou a fabricação à moda antiga de farinha de mandioca. Ou seja: resgata o protagonismo daqueles que por séculos lutaram – e ainda lutam – pela manutenção de suas tradições.
A Lei Rouanet tem suas falhas e não cumpre à risca seu papel principal, que é a distribuição de renda para as diversas formas de cultura. As decisões de quem receberá ou não o dinheiro (que é público) continuarão nas mãos de marqueteiros, que, em linhas gerais, têm muito mais interesse no retorno para suas marcas do que em cultura. Por isso, a mudança na lei não garante, por si só, que povos tradicionais vejam seus pratos na mesa do povo da noite para o dia.
Mas simbolicamente, pelo menos, representa uma valorização das comidas típicas de todo o país, dos imigrantes, da comida de rua, dos pratos exóticos. E não só.
O assunto está vinculado também a temas como a agricultura orgânica; o incentivo a novos pescados; a popularização das PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais, como a taioba, a bertalha e a serralha) dentre outros. É mais uma oportunidade para debater temas urgentes, como o consumo sustentável, os agrotóxicos, o desmatamento e até a obesidade infantil. Aliás, outra boa iniciativa do Governo diz respeito à nova cartilha do Ministério da Saúde, que encoraja as famílias a voltarem a cozinhar e a ter contato com os alimentos, numa medida para frear os índices catastróficos de crianças com sobrepeso, diabetes e outros males.
É verdade que não há muito o quê comemorar. O projeto ainda terá de passar pelas comissões de Finanças e Tributação, e de Constituição e Justiça e Cidadania, antes de virar lei. E mesmo que se torne lei, ainda veremos políticos oportunistas usando o pífio investimento em tradição e cultura como propaganda para administrações que, na prática, pouco se importam com o dia a dia de pescadores, quilombolas e indígenas, e pouco se importam se estamos ingerindo veneno ou não.
Em Ubatuba, não vingaram iniciativas fundamentais como a Festa das Comunidades Quilombolas, que por dois anos (2013 e 2014) aconteceu no Sobradão do Porto, no mês de maio. O evento reunia pratos típicos do cotidiano quilombola e caiçara, como Azul Marinho, Bolinho de Taioba, estrogonofe de lula com molho de juçara, galinhada caipira e uma inesquecível salada de coração de bananeira. Tudo feito com esmero pelas cozinheiras dos quilombos da Caçandoca, Sertão de Itamambuca, Fazenda e Cambury.
O salão vazio nos 2 anos de evento serve como um termômetro do gosto popular, e prova que a culpa também é nossa, da população, que procura sempre o mesmo peixe, as mesmas frutas e verduras, as mesmas carnes. Enfim, sempre mais do mesmo.
As receitas, os ingredientes e a tradição dos povos continuarão dependendo da transmissão oral para sobreviver. Mas que a lei, se aprovada, ao menos sirva de estímulo para aqueles que dedicam tempo e dinheiro em projetos de cultura alimentar. A natureza continua fazendo a parte dela, como diz Tom Jobim em Brasil Nativo: “E o que é que dá? Caju, pitanga e guaraná”. E muito, muito mais.
Fonte: http://www.tamoiosnews.com.br/