Fachada de casa na Praia das Cigarras onde funciona a empresa, de acordo com a Junta Comercial
Acácio Gomes
O Ministério Público de Caraguatatuba recebeu denúncia protocolizada pelo empresário Walmir José da Silva, morador do bairro Morro do Algodão, apontando que a Prefeitura local mantém contrato de prestação de serviços com uma empresa, cuja sócia majoritária é comissionada e lotada na Secretaria de Saúde.
Segundo o denunciante, Lisandre Frazão Brunelli é diretora da Divisão de Programação e Orçamentos e ainda acumularia as funções de médica psiquiátrica no Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) II e na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), cumprindo uma carga horária só nas duas últimas funções de 56 horas semanais.
Além disso, conforme documentos apurados pela reportagem, ela tem atualmente 98% do quadro societário da empresa Axon Comércio de Produtos e Equipamentos Ltda, que presta serviços de fornecimentos de materiais e equipamentos para diversas secretarias da administração. De acordo com a Junta Comercial do Estado de São Paulo, a empresa Axon tem como endereço a Rua das Conchas, no bairro Praia das Cigarras, em São Sebastião.
Nos documentos que o Imprensa Livre teve acesso ficou apontado que a empresa foi constituída em 2009 ainda como Axon Construções, Gerenciamento e Incorporações Ltda e com os seguintes objetos sociais: construção de edifícios; construção de redes de abastecimento de água, coleta de esgoto e construções correlatas, exceto obras de irrigação; obras de terraplanagem; administração de obras; e atividades paisagísticas.
Na oportunidade, o capital da empresa era de R$ 120 mil. Porém, o nome de Lisandre Frazão Brunelli aparece somente em 2010 quando foi alterado o nome da empresa passando para a hoje Axon Comércio de Produtos e Equipamentos Ltda. Na oportunidade, a servidora aparece na sociedade com valor de participação de R$ 60 mil. E pela última alteração da empresa, em março do ano passado, Lisandre já aparece com 98% do valor de participação da empresa, ou seja, R$ 117,6 mil.
A mesma Junta Comercial aponta que em seu nome ainda está registrada, com data de constituição em março deste ano uma Clínica Médica de Otorrinolaringologia, Homeopatia, Psiquiatria e Psicoterapia. O endereço da clínica, segundo o documento do Estado, é o mesmo da Axon Comércio de Produtos e Equipamentos Ltda, ou seja, na Praia das Cigarras, em São Sebastião.
“Conforme os documentos anexados, acredito haver conflito de interesses, uma vez que a servidora consta no rol de funcionários responsáveis pela Divisão de Programação e Orçamentos da Secretaria de Saúde, onde a mesma atua como servidora e cliente da própria empresa”, citou o empresário na denúncia encaminha ao MP.
Ainda de acordo com Silva, na planilha de produtos fornecidos pela Axon Comércio de Produtos e Equipamentos Ltda foi apurado que os produtos de limpeza deveriam ser fornecidos pela empresa Sol Urbanizadora, que é a responsável pela zeladoria da Prefeitura. “Só com isso configura-se duplicidade de contrato com o mesmo fim, já que as duas fornecem material de limpeza para as Secretarias de Educação e Saúde”, alerta.
Câmara
O assunto levantado na denúncia ecoou na Câmara de Caraguatatuba na sessão da última semana. O vereador Renato Leite Carrijo de Aguilar, o Tato Aguilar (PSD), levou os documentos ao plenário e comentou o caso na tribuna, inflamado pelo grupo de funcionários da empresa Sol Urbanizadora que estava no local protestando pelo não recebimento dos salários referentes ao mês de setembro.
“Por que não rompe o contrato com a Sol Urbanizadora? Porque o buraco é mais embaixo. Apresento aqui a denúncia de que há uma duplicidade de contrato. A Sol faz o mesmo serviço que a empresa Axon Comércio. No artigo 8º do contrato da Sol consta compra de material de limpeza para uso dos funcionários”, disse.
Ele comentou ainda que a Sol Urbanizadora realiza os serviços para as Secretarias de Saúde e Educação. “Na rubrica referente ao contrato da Axon há materiais para a Saúde e para a Educação, que chegam a R$ 400 mil no ano, como detergente, saco de lixo. E o mais estranho é que a empresa é de uma funcionária que acumula três funções na Prefeitura”, alertou.
Ele finalizou o discurso dizendo que no caso denunciado há conflito de interesses, dano ao erário público e improbidade administrativa.
Apuração
Em nota, a Prefeitura de Caraguatatuba desconhece a procedência das acusações apresentadas ao Ministério Público, não tendo sido notificada sobre instauração de qualquer procedimento.
“A servidora é de fato médica psiquiátrica e como tal exerce suas atividades na rede municipal de atendimento. Quanto à atividade exercida, a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente no artigo 37, XVI a possibilidade do ‘acúmulo de cargos aos profissionais da área de saúde’, desde que preenchidos alguns requisitos, como por exemplo, carga horária compatível”, explicou a municipalidade.
Em relação à empresa Axon Comércio de Produtos e Equipamentos Ltda, a Prefeitura de Caraguatatuba garantiu que não foram constatadas no período de vínculo da servidora as mencionadas “contratações” nem os valores exorbitantes apontados pelo denunciante.
“Inclusive, desconhecemos qualquer relação entre Axon e a empresa Sol, não havendo registro de que ambas guardem algum vínculo entre si”, disse a nota. Porém, segundo o documento enviado ao Imprensa Livre, a Prefeitura cita que, de qualquer maneira, todas as denúncias e informações estão sendo mais precisamente apuradas pela Secretaria de Administração e se constatada alguma irregularidade, providências serão prontamente adotadas, com responsabilização de todos os envolvidos.
“A Secretaria de Saúde sempre soube que eu tinha uma empresa chamada Axon, nunca escondi isso”, diz médica denunciada
Em posse da denúncia, a reportagem do Imprensa Livre foi apurar os setores em que a médica é lotada. O primeiro contato feito foi na Secretaria da Saúde onde fomos informados que não teria ninguém trabalhando na pasta com o respectivo nome. Já na Unidade de Pronto Atendimento, a reportagem foi informada que a médica não faz plantão no local e atenderia no CAPS.
A médica Lisandre Frasão Brunelli foi localizada realmente no CAPS e pedimos uma entrevista para que a mesma falasse do assunto. Na oportunidade, ela solicitou um tempo maior, pois precisaria se reunir com o advogado para atender a reportagem.
No dia seguinte, o Imprensa Livre esteve em frente à casa onde consta como sede da empresa, na Praia das Cigarras, em São Sebastião, e fomos recebidos pela médica e seu advogado.
Ela começou a entrevista falando primeiramente sobre a questão dos cargos citados na denúncia. “Eu fui contratada para o cargo de diretora como comissionada. Eu trabalhava como clínica no PSF do Barranco Alto durante um ano e era contratada pela empresa terceirizada SPDM. Devido à falta de psiquiatra no CAPS, a Prefeitura entrou em contato comigo, me propondo que trabalhasse no órgão”.
Mas, segundo conta, tinha acabado de passar no concurso público em São Sebastião para médica psiquiatra no CAPS AD.
“Tomei posse, porém o CAPS AD de São Sebastião não havia sido inaugurado e nesse meio tempo, antes da posse e enquanto aguardava a inauguração, eu precisava trabalhar. Aceitei o convite de Caraguá informando que seria um período de 30 dias, já que havia passado no concurso em São Sebastião e seria empossada. Como na forma emergencial não haveria a possibilidade de contratação por parte da Prefeitura de Caraguá para o cargo de médica psiquiátrica, tenho um cargo de diretora, mas atuo como médica no CAPS. É um desvio de função”.
Ela confessou ainda que a escolha da função de diretora foi aleatória. “Era o cargo que tinha e sob o olhar do denunciante, ele pensa que eu ocupo essa função de diretora, mas que não é. Não exerço nenhuma função neste cargo de diretora da Divisão de Programação e Orçamentos”.
Amor
Ela relatou à reportagem que começou a trabalhar no CAPS e se apaixonou pelo local e os pacientes. “Por isso fui ficando. O concurso de São Sebastião me chamou, mas apareceram negócios para a Axon Comércios para São Sebastião e, diante disso, eu preferi pedir a exoneração e assumi o cargo de Caraguá”, comenta.
Mas ela relatou que o salário de diretora, ou seja, R$ 2,8 mil mensais era inviável financeiramente para seu sustento.
“Foi feita uma negociação e por este salário me foi estabelecida uma carga horária de 30 horas no CAPS II”.
UPA
Também consta na denúncia que a médica está lotada na Unidade de Pronto Atendimento do Jardim Primavera. “A UPA ia ser inaugurada e com administração do Hospital Bandeirante. Fui consultada para trabalhar no chamado plantão à distância e eu aceitei, mas o contrato teria de ser como pessoa jurídica, ou seja, tenho uma micro empresa e apresento nota para o Grupo Bandeirante. Isso foi acordado, desde que não comprometesse meu trabalho no CAPS II. Geralmente na UPA faço plantão às quartas, quintas e sextas e mais um final de semana sim e outro não, mas sempre à distância”, esclareceu.
A empresa
Sobre o vínculo com a empresa, a médica explicou que a Axon Comércios de Produtos e Equipamentos Ltda surgiu há cinco anos na casa na Praia das Cigarras.
“Agora só temos algumas coisas aqui, pois mudamos para o Varadouro. Começamos do zero e a empresa trabalha para diversas prefeituras como Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Taubaté, Caraguá, Ilhabela, São Sebastião, entre outras”.
Parte da denúncia apresentada ao MP aponta ainda como mais grave o fato de a servidora comissionada ter em seu nome uma empresa que presta serviços para a administração de Caraguá.
A médica afirmou que sempre foi um desejo tirar seu nome da empresa. “Coloquei meu nome, pois a gente começou do zero. Mas conforme a empresa foi crescendo, comentei com meu marido a mudança dos sócios, pois não queria nenhum problema com meu nome. Eu pedi exoneração do meu cargo em São Sebastião e isso é o meu maior ato de boa fé que eu mostrei”.
Contratos e futuro
Em relação aos contratos com a Prefeitura, ela afirmou categoricamente que nunca foram feitos com a Saúde.
“A maior parte era com a Educação, como máquinas de lavar roupas em creches. Os materiais de limpeza fornecidos em contrato foram na época em que eu não era nomeada no cargo”.
Questionada pela reportagem se achava que, mesmo sendo comissionada, era legal ou moral ter um contrato com a Prefeitura de Caraguá, a médica foi enfática.
“Isso quem vai responder é quem me contratou. Estou fazendo meu trabalho. Faço minha carga horária, até porque a Secretaria de Saúde sempre soube que eu tinha uma empresa chamada Axon, nunca escondi isso”.
Ela afirma que mesmo sendo sócia majoritária e ter em seu nome a Axon Comércios de Produtos e Equipamentos Ltda, não exerce função administrativa e de diretoria na empresa. “Isso é feito pelo meu marido”.
Sobre as consequências da denúncia, como a possibilidade de exoneração do cargo ou rompimento de contrato com sua empresa, a médica finaliza a entrevista dizendo que está preparada para tudo.
“Quem não deve não teme, mas estou preparada até para a exoneração. Se tiver que acontecer, paciência. O meu interesse é puramente exercer a medicina. A paixão que eu tenho pelos pacientes é o que move”. (A.G.)
Foto: Acácio Gomes/IL